A ARTE DA PERFORMANCE
A performance como disciplina artística: definição sintética
A performance, no sentido que aqui nos interessa, é uma prática artística temporal, muitas vezes efêmera, centrada numa ação realizada (ou encarnada) por um artista perante uma audiência ou perante o espaço público, em que o processo e a presença corporal constituem o próprio “suporte” da obra, mais do que um objeto perene.
Trata-se portanto de uma modalidade em que o evento, a sua duração e a relação com o público (presencial ou mediado) são primaciais, primordiais; registos fotográficos ou audiovisuais funcionam frequentemente como documentos secundários e são tratados como registro do que aconteceu. (Encyclopedia Britannica).
Genealogia e precursores históricos
A genealogia da “performance art”, da arte da performance é complexa e entrelaça-se com várias tradições culturais e vanguardas do século XX:
Antecedentes rituais e dramáticos, elementos “performativos” existem em ritos comunitários, tragédias gregas e festivais populares; esses antecedentes demonstram que a ação encarnada como tecnologia de sentido antecede a modernidade ocidental. (Encyclopedia Britannica)
Vanguardas históricas, Futurismo, Dada e os cabarés (p. ex. Cabaret Voltaire) trouxeram o gesto performativo ao âmbito artístico: eventos, leitura performática e escândalos como práticas que borram os limites entre arte e vida.
RoseLee Goldberg e outros historiadores traçam essa continuidade entre os eventos das vanguardas e a performance contemporânea. (damianofina.it)
“Happenings” (acontecimentos) e “intermedia”, surgidos no final dos anos 1950 e início da década de 1960, por artistas como Allan Kaprow formularam os happenings: obras-evento que valorizavam ação quotidiana, participação e a indeterminação do resultado. Estes eventos foram fundamentais para deslocar o foco do objeto para a ação processual. (The Art Story)
Fluxus, body art e conceitos correlatos
Fluxus (George Maciunas, Yoko Ono, Nam June Paik, entre outros) e artistas do “Body art” e do “desmaterializado” (Lucy Lippard) consolidaram a noção de que a arte pode residir em ações, instruções e rituais corporais que recusam a mercadoria tradicional (o objeto material da arte). (Performance Art Resources)
Marcos canônicos nas artes visuais (seleção crítica)
A seguir, mostro algumas performances que funcionam como nós de referência na historiografia contemporânea:
Yves Klein, Anthropometries (1960): uso do corpo como “pincel” e encenação pública que questiona as categorias de pintura e ação. Visto como antecedente imediato da “performatividade” na arte. (damianofina.it)
Allan Kaprow, 18 Happenings in 6 Parts (1959): estabelecimento do happening como forma, sublinhando participação e processo. (Monoskop)
Carolee Schneemann “Meat Joy” (1964) e “Interior Scroll” (1975): confrontos com a sexualidade, corporalidade e tabus, articulando feminismo, corpo e espetáculo. (Wikipedia)
Joseph Beuys, ações e discursos (anos 60–70): mitopoética autobiográfica, ampliação do conceito de arte (“social sculpture”). (Encyclopedia Britannica)
Vito Acconci, “Seedbed” (1972) e Chris Burden, “Shoot” (1971): exploração dos limites do risco, intimidade e relação artista-público; exemplares da chamada “endurance” e da performance de risco. (Wikipedia)
Marina Abramović, “Rhythm 0” (1974), The Artist Is Present (2010): testes extremos de vulnerabilidade e presença (endurance, confiança, responsabilidade do espectador). Abramović tornou-se paradigma do corpo-como-meio. (Wikipedia)
Ana Mendieta, Regina José Galindo, Tania Bruguera: referências que deslocam a performance para o campo do trauma, política identitária, territorio e corpo como arquivo político. (Wikipedia)
Esses marcos não apenas documentam operações estéticas, mas constituem genealogias conceituais, cada obra reconfigura relações entre corpo, linguagem, instituição e sociedade.
Conceitos centrais e tipos de performance
Alguns conceitos que atravessam a prática:
Happening/evento: ação participativa, muitas vezes não especificada e aberta ao acaso. (Monoskop)
Body art/arte corporal: uso explícito do corpo do artista como matéria-prima. (Encyclopedia Britannica)
Endurance art: ênfase na duração e sobrecarga física/psíquica (e.g. Abramović). (Wikipedia)
Fluxus/intermedia: obras breves, frequentemente baseadas em instruções, que dissolvem categorias disciplinares. (Performance Art Resources)
Diferenças disciplinares:
performance art × teatro × dança
× artes visuais
Uma das questões centrais para historiadores e críticos é demarcar, sem simplificações, o que distingue a performance na arte dos outros ramos performativos.
Performance art vs. Teatro
O teatro tradicional estrutura representação e ficção: atores interpretam papéis num enredo predeterminado; existe uma “moça” de representação que sustenta a ilusão dramática.
A performance art tende a rejeitar a ilusão ficcional em favor da “presença real”, aquilo que Victor Turner chamou de distância entre rito e espetáculo, e que críticos contemporâneos rearticulam como a diferença entre “fazer” e “fingir”. Em muitos trabalhos de performance art a dor, o risco e a ação são efetivos (não simulados), o que cria uma ética distinta em relação ao teatro. No entanto, as fronteiras são porosas: vários projetos contemporâneos misturam dramaturgia e prática performativa. (The Guggenheim Museums and Foundation)
Performance art vs. Dança
A dança formal (e disciplinas derivadas) produz técnicas codificadas, repertório e treino corporal específico (virtuosismo motor). A performance art pode incorporar movimento, mas geralmente não subordina a ação a técnicas codificadas nem à estética do virtuosismo; em vez disso, prioriza a ideia, o gesto, a relação com o público e a contingência. Ainda assim, há híbridos (performances coreográficas experimentais) que cruzam ambos os campos. (Culturebot)
Performance art vs. Artes Visuais
(pintura, escultura, instalação)
Nas artes visuais a ênfase histórica recai sobre objetos permanentes; a performance desloca a materialidade para o tempo e o corpo. Contudo, a performance frequentemente articula-se com instalação e vídeo (ex.: ações entre objetos, site-specific), e as instituições museológicas passaram a colecionar documentação, comissariar performances e comissionar trabalhos ao vivo. A chamada “desmaterialização” da obra (conceitualismo dos anos 60–70) é ponto de contato entre performance e práticas conceituais. (Encyclopedia Britannica)
Problemas metodológicos e éticos para o crítico-historiador
A prática performativa coloca desafios singulares: ephemeridade, dependência de testemunho, fragilidade documental e questões éticas (quando a ação implica dano, risco ou exploração).
O historiador deve equilibrar descrição atenta (cronologia, contexto institucional, biografia) e leitura crítica, sem reduzir a obra a mero espetáculo sensacionalista. Documentação audiovisual é útil, mas é insuficiente para abarcar a experiência vivida e as relações de presença e responsabilidade entre artista e audiência. (Monoskop)
Contribuições teóricas e política da performance
A performance reconfigura categorias de autoria, propriedade e público. A partir dos anos 60 a performance foi veículo de críticas ao mercado de arte (Fluxus), de afirmação de identidades marginalizadas (feminismos, pós-colonialismo) e de experimentos coletivos. Teóricos e curadores (RoseLee Goldberg; institutos como Performa) ajudaram a consolidar um campo que hoje articula pesquisa, comissionamento e práticas públicas. (Monoskop)
Síntese interpretativa (valor crítico)
Do ponto de vista estético e historiográfico, a performance é uma prática que radicaliza a pergunta sobre “o que é arte?”: desloca o centro da obra do objeto para o acontecimento, problematiza a divisão entre vida e arte e faz da presença, do risco e da responsabilidade estética os seus meios cognitivos. Como forma de investigação artística, a performance permanece um laboratório privilegiado para testar limites éticos, políticos e ontológicos da produção cultural contemporânea.
Fonte
Mansur Ramires, N. M. O que é performance? Entre contexto histórico e designativos do termo. (2017).
Bibliografia consultada (seleção comentada)
(As entradas abaixo correspondem às fontes utilizadas para os trechos mais decisivos do texto.)
RoseLee Goldberg, Performance: Live Art Since the 60s, panorama canônico e genealogia crítica que conecta vanguardas históricas e práticas contemporâneas. (Monoskop)
Encyclopaedia Britannica, verbetes “performance art” e “body and performance art”, definição sintética e histórico-crítica útil para delimitação conceitual. (Encyclopedia Britannica)
Monografias e PDFs sobre happenings e Kaprow; arquivo Monoskop com materiais sobre 18 Happenings in 6 partes. (Kaprow como nodo fundacional dos eventos artísticos processuais.) (Monoskop)
Artigos de síntese sobre Fluxus, intermedia e a “desmaterialização” da arte (coleções e recursos críticos). (Performance Art Resources)
Textos e listas históricas que documentam performances canônicas (Abramović, Burden, Acconci, Schneemann) e a categoria endurance art. (Wikipedia)